Impressões da Leitura de “Piquenique na Estrada”, dos Irmãos Strugatsky*

Por José Geraldo Gouvêa

Roadside Picnic é um livro sobre uma visita extraterrestre ao nosso mundo. Dito assim, parece um livro igual a centenas de outros. Mas quando você o lê, percebe que há poucas obras parecidas.

“Piquenique na Estrada” (Roadside Picnic) é um dos maiores clássicos da ficção científica soviética. Publicado em 1965, este romance de autoria dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky merecia ser mais conhecido e lido, não só por suas qualidades literárias como por seu teor sutilmente político, contendo uma corajosa sátira ao comunismo.

Inicialmente vou dizer umas breves palavras sobre os autores. São tidos pela crítica especializada como verdadeiros gênios literários incompreendidos, cuja obra não pode ser perfeitamente fruída pelos ocidentais devido à profunda carga linguística que ela possui, mesclando neologismos e arcaísmos, coloquialismos e terminologia científica (e pseudocientífica). Não pude, obviamente, ver nada disso na tradução americana (que, aliás, me pareceu bastante “porca”), mas detectei vários dos outros elementos que são apontados como evidências da genialidade dos irmãos: a curiosa (e sempre inquietante) mistura entre sátira, idealismo, cinismo, ateísmo, superstições e construção psicológica de personagens muito densos e complexos. Resumindo: trata-se realmente de um trabalho literário de alta envergadura. Os irmãos estão, no gênero ficção científica, na mesma categoria dos “quatro grandes” (Asimov, Bradbury, Clarke e Heinlein) e, sob certos aspectos, estão acima.

Pode parecer surpreendente que eu afirme isso sem ter lido sua obra no original, mas o que se pode entrever nesta tradução que li justifica plenamente a reputação dos dois: eles são simplesmente ousados além da conta, em todo e qualquer aspecto (exceto na formalidade da narrativa e da pontuação). Vamos por partes.

Roadside Picnic é uma obra carregada de sátira. Pelo que leio das sinopses, todas as obras dos irmãos Strugatsky são amargamente satíricas. É surpreendente que eles não tenham sido deportados para a Sibéria e morrido lá. Talvez o expediente de deslocar sua sátira para mundos inventados do futuro ou países estrangeiros (como o Canadá, nesse romance) tenha permitido que os censores não percebessem que o alvo da sátira era o comunismo. É preciso ser “muito macho” para satirizar o comunismo se você nasceu em 1925 na União Soviética. Os irmãos Strugatsky foram, e morreram de velhice (embora algumas de suas obras, entre elas esta, tenham sido severamente censuradas antes da publicação e só tenham sido restauradas após o fim do comunismo). Em Roadside Picnic a sátira não está exatamente dirigida ao comunismo, mas ao seu cientificismo. Ao longo do livro os cientistas (mostrados como pessoas idealistas, mas ingênuas) comportam-se como crianças que procuram entender os brinquedos que ganharam. A religião também é satirizada (neste livro está a célebre frase “A hipótese de Deus nos dá uma oportunidade absolutamente incomparável de entender tudo e não saber nada”), bem como o ideal do self made man (os heroicos personagens do livro se revelam pessoas absolutamente detestáveis, como Burbridge, ou meros instrumentos da ganância do “sistema”, como o protagonista).

O livro literalmente atira para todos os lados: os personagens são de vários tipos, um comerciante corrupto, um cientista ingênuo, um ladrão que se acha um tipo de herói, um cientista absolutamente cínico, um policial violento, um barman covarde, um negro supersticioso… cada um deles se relaciona de uma forma diferente com o grande mistério de que fala o livro: as “Zonas”.

Roadside Picnic é um livro sobre uma visita extraterrestre ao nosso mundo. Dito assim, parece um livro igual a centenas de outros. Mas quando você o lê, percebe que há poucas obras parecidas. Para começar, a visita em si é apenas uma hipótese desenvolvida para explicar um fato: o aparecimento sobre a Terra de sete estranhas “zonas” onde ocorrem fenômenos que contradizem a lei da física, onde se encontram objetos estranhos e inexplicáveis, onde tudo subitamente parece que se tornou hostil à vida como a conhecemos (os pássaros não voam sobre as “zonas” e lá não há insetos).

Os extraterrestres não aparecem, ninguém os viu (ou sobreviveu após vê-los para poder contar). Mas o seu legado, os objetos e fenômenos que eles deixam para trás, assombram o livro do começo ao fim e, revelando o alcance do cinismo dos autores, demonstram-se tão indiferentes à nossa existência que um personagem chega a dizer que isso foi uma sorte, pois se nos tivessem notado, teriam feito conosco como fazemos com as formigas que poderiam atrapalhar nosso piquenique à beira da estrada (nesse ponto, lá pelo meio do livro, você entende o porquê do título). Para os extraterrestres nós nem sequer somos visíveis. Se os espanhóis tiveram dúvidas se os ameríndios eram humanos, Strugatsky argumenta que talvez nós e os Visitantes nem nos reconhecêssemos como seres vivos e pensantes: “Usualmente uma definição trivial [de racionalidade] é usada: a razão é a função humana que nos distingue dos animais. Ou seja, uma tentativa de distinguir entre o homem e o seu cão, que a tudo entende mas não sabe falar.”

Resta-nos, então, coletar os restos de suas fogueiras, as pilhas descarregadas de seus rádios, migalhas de seu pão, uma bola de pingue-pongue perdida no lago, um talher de plástico quebrado, gotas do óleo de seu carro que pingaram na grama, o lenço perfumado, talvez uma camisinha usada… “Exatamente. Um piquenique durante a viagem, à beira de alguma estrada do universo. E você me pergunta se eles vão voltar.”

Estou agora determinado a continuar lendo as obras de Bóris e Arcádio Strugatsky. Eles são bons, são livros densos e que fazem pensar. São ficção científica para gente que gosta de refletir, e não para jovens obcecados com um vírus que faz zumbis ou com robôs alienígenas que se transformam em carrões. E os títulos prometem: Um Besouro no Formigueiro, Segunda Começa no Sábado, Certamente Talvez, Como É Duro Ser um Deus, Um Arco Íris ao Longe, Meio-Dia no Século XXII, O Último Círculo do Paraíso, O Mowgli do Espaço… Seria ótimo se estas obras geniais estivessem disponíveis em português, mas quase me dá vontade de aprender russo para lê-las.

“Piquenique na Estrada” foi adaptado para o cinema através do filme “Stalker”, de Andrei Tarkovski, com trilha sonora de Eduard Artemiev. Embora pouco fiel ao universo do livro, o filme (que adota uma abordagem menos obviamente “sci-fi”) consegue prestar uma bonita homenagem ao livro, além de nos brindar com uma curiosa sonoridade, em que todos os sons, menos as vozes das personagens e o motor de uma solitária moto, são sintetizados por Artemiev em instrumentos artesanais de sua construção.

*Artigo originalmente publicado em 2011, no blog Letras Elétricas .

José Geraldo Gouvêa nasceu em Cataguases (MG) e reside atualmente em Pequeri, no mesmo estado. Ex-professor de História, atualmente é bancário. Já publicou o romance “Praia do Sossego” pela Editora Multifoco, em 2010, e participou como tradutor da obra “O Mundo Fantástico de H.P.Lovecraft”, da Editora Clock Tower, em 2013. Traduziu obras de W. H. Hodgson e Clark Ashton-Smith (traduções ainda não publicadas). Também são inéditas as obras “Amores Mortos” (romance de formação) e “O Pecado da Tristeza” (livro de contos, no prelo pela Com-Arte, Ed.USP). Escreve no blog “Letras Elétricas”.

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3 comentários em “Impressões da Leitura de “Piquenique na Estrada”, dos Irmãos Strugatsky*

  1. Lembrando que o Tarkovsky e mais três atores do Stalker morreram de câncer por causa desse filme, gravado numa área radioativa da Estônia. Muito bem escrita a resenha, fiquei bem interessado em ler.

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