A Morte da Escrita é a Falta de Tempo*

Por José Geraldo Gouvêa

A tris­teza do escri­tor é a de não ter tempo para escre­ver, não poder desen­vol­ver as ideias que fer­vem na sua mente, e ao mesmo tempo não per­ce­ber que esse ine­xo­ravelmente se esgota, sem que a obra prima seja com­pleta

Quando era estu­dante deparei-​​me, certa vez, com uma trova por­tu­guesa, cuja auto­ria se per­deu nas tre­vas, que dizia o seguinte: « o tempo não me dá tempo/​ de bem do tempo fruir /​ e nessa falta de tempo /​ não vejo o tempo fluir ». Como sem­pre ocorre quando nos depa­ra­mos com ver­da­des que ainda esta­mos ver­des para comer, demo­rei trinta anos para come­çar a dige­rir esses qua­tro versos  singelos.

A tris­teza do escri­tor é a de não ter tempo para escre­ver, não poder desen­vol­ver as ideias que fer­vem na sua mente, e ao mesmo tempo não per­ce­ber que esse ine­xo­ravelmente se esgota, sem que a obra prima seja com­pleta, o reconheci­mento venha e torne-​​se pos­sí­vel a frui­ção da vida segundo o sonho. Mas não se limita a isso a tal tris­teza. Gra­du­al­mente per­ce­be­mos que não nos sobra tampouco o tempo para usufruir de coi­sas que ape­nas nos dariam pra­zer. É como se o mundo em torno de nós cons­pirasse sempre con­tra o pra­zer e o ócio, que são a essên­cia da ati­vi­dade literária.

Entre os pra­ze­res cita­dos está o da des­co­berta. Con­tra­ri­a­mente ao que pen­sam mui­tos jovens que acham que são escri­to­res só porque escre­vem, há no escri­tor um pra­zer de achar o novo. Qual­quer novi­dade sem­pre repre­senta uma opor­tu­ni­dade para aprender o ainda igno­rado, para aper­fei­çoar algo que ainda é inci­pi­ente, para supe­rar o que já deve­ria estar esque­cido. A descoberta é um pro­cesso que pode ser longo: mui­tos auto­res pre­fe­rem inves­tir déca­das des­co­brindo antes de come­ça­rem a escrever, mas há outros que fazem dela uma fer­ra­menta de pro­gresso depois que já come­ça­ram, e ainda há os que a temem, por­que toda desco­berta ame­aça um preconceito.

Não sou melhor do que nin­guém (de fato sou até pior que mui­tos), mas amo este pra­zer pequeno de me depa­rar com coi­sas diferentes. Mui­tas foram as vezes em que eu para­li­sei a minha vida por horas, ou até dias, embe­ve­cido na con­tem­pla­ção de novidades, algu­mas até sin­ge­las. Lembro-​​me de mara­to­nas de lei­tura de auto­res novos, em que mer­gu­lhava em uni­ver­sos alheios e me esque­cia até mesmo a hora do almoço. Foi assim que li Sta­nis­law Lem, Phi­lip K. Dick, João Gui­ma­rães Rosa, José Cân­dido de Car­va­lho, Robert A. Hein­lein, José Lins do Rego, Manuel Antô­nio de Almeida, Eça de Quei­rós, Joa­quim Manuel de Macedo, Lima Bar­reto, H. P. Love­craft e Niko­lai Gógol. Lembro-​​me de fil­mes que me dei­xa­ram em ver­da­deiro estado catatô­nico: Robo­Cop, 2001: Uma Odis­seia no Espaço, Per­sé­po­lis, Boniti­nha mas Ordi­ná­ria, Stalker.

Mas o tempo, que não me dá tempo de bem dele fruir, tem cada vez cons­pi­rado mais con­tra esses peque­nos pra­ze­res edu­ca­ti­vos. Tra­ba­lhando agora de oito às dezoito, de segunda à sexta-​​feira, sobra-​​me pouco estô­mago, aos qua­renta e um anos, para dige­rir a mon­ta­nha de novi­da­des inte­res­san­tes com que o mundo me cum­pri­menta todos os dias. Nessa situa­ção, é natu­ral que se comece a esco­lher com cau­tela. Em vez de me ati­rar nos bra­ços de toda notí­cia, tento adi­vi­nhar, sei lá como, quais mere­cem minu­tos de meu escasso tempo. É uma esco­lha arris­cada, mais base­ada em pre­con­ceito ou achismo do que em método. Mui­tas vezes a esco­lha é feita com base na repu­ta­ção do amigo que indica, mas o amigo pode ter indi­cado por causa de outro amigo, que eu não conheço, e o resul­tado é que, de fato, eu estou ape­nas limi­tando minha expo­si­ção ao novo, mas sem nenhum parâmetro.

Dias atrás tive a per­cep­ção exata da cru­el­dade disto quando, num momento de pura falta do que fazer, sob o impé­rio de uma densa pre­guiça men­tal, resolvi cli­car num link ofe­re­cido por um amigo que tem por hábito me indi­car coi­sas insa­nas que nem sem­pre me agra­dam. Da última vez que cli­quei num link dele eu vi um vide­o­clipe de música dan­çante em dese­nho ani­mado, envol­vendo um cava­leiro inglês, uma cam­po­nesa, lam­bi­das em um cavalo e uma música chi­clete difí­cil de tole­rar. Mas este clipe era diferente.

A come­çar pelo título, « Monty Cant­sin – I Beli­eve in Neoism », parte de um álbum intitu­lado « Ahora Neois­mus ». A ima­gem de capa suge­rindo vaga­mente o rea­lismo soci­a­lista, de uma forma aliás aná­loga à do « Lit­tle Red Record » (Pequena Gra­va­ção Vermelha, álbum lan­çado pelo grupo pro­gres­sivo inglês Mat­ching Mole em 1973). Por incrí­vel que pareça eu, um razoá­vel conhece­dor da ico­no­gra­fia soci­a­lista e dotado de alguma noção dos movi­mentos van­guar­dis­tas do iní­cio do século pas­sado, não dei aten­ção ini­cial ao compartilha­mento de meu amigo.

É evi­dente nos dois casos o tom de sátira a íco­nes da cul­tura esquer­dista pop. A influên­cia óbvia do « Lit­tle Red Record » (título que em si sati­riza o « Livri­nho Ver­me­lho », de Mao Tse Tung) é o rea­lismo soci­a­lista sta­li­nista, mas Monty Cant­sin parece mis­tu­rar um pouco disso, via ico­no­gra­fia norte core­ana, com doses de visual otaku e k-​​pop. Não tenho uma cul­tura visual sufi­ci­ente para decodi­fi­car todas as refe­rên­cias, e espero que nos comentá­rios os meus lei­to­res me aju­dem a escla­re­cer melhor.

Quando final­mente topei cli­car no link, espantei-​​me ao ouvir uma longa série de aplau­sos, com um efeito de eco, como se esti­vesse em um está­dio, depois, adicionou-​​se sobre ela uma espé­cie de dis­curso que pare­cia polí­tico, que soava como Hitler em Nurem­berg, ou como Stá­lin falando pelo rádio, ou Getú­lio Var­gas. Um dis­curso polí­tico anti­quado na ento­nação, mas estra­nha­mente incongruente em seu con­teúdo, que é difí­cil de tra­du­zir jus­tamente por ser vazio de todo con­teúdo, como um poema dadaísta, ou um discurso popu­lista de governo tota­litário, que começa pare­cendo ter algum sen­tido, mas vai der­re­tendo a cada frase, até se transfor­mar em uma bal­búr­dia ridícula.

Peo­ple, here I am stan­ding in front of you and stan­ding with you, peo­ple. You are part of me, and I’m tel­ling you to this day: without me life has no mea­ning and I’m the best fri­end you’ll ever have. I’ve come to touch myself: No! No! No! I’ll never touch myself […] Do you want to know what time is it? No! What time is it? I am sur­pri­sed now to hear this ques­tion. What time is it? Can you tell me what time is it? Have you the time? Tell me, ‘cos I never watch that clock. Time is a « fig­men­tion. » I never watch that clock, but I can tell you what time is it because there is only one impor­tant time in our lives. Six o’clock. Yes, in our land is always six o’clock. It’s six o’clock sharp. Six o’clock is happi­ness. Six o’clock means love, joy. Six o’clock is total fre­e­dom. Six o’clock is when you do what you like. Ahora neois­mus. Ahora neois­mus. You don’t need the clock, you don’t need your watch …

Quando ter­mi­nei de ouvir a faixa eu estava mudado. Sob a capa de apa­rente imbe­ci­li­dade parece haver pul­sando algo que faz sentido. Estava deter­mi­nado a des­co­brir mais sobre Monty Cant­sin e o neoísmo, seja lá o que isso for. E esta busca ocu­pou o resto do meu sábado e um pedaço do meu domingo. Uma des­co­berta nova, coisa que rara­mente acon­tece comigo nesta fase vazia da minha vida. É uma pena que eu não tenha muito tempo para apren­der mais, que os fru­tos do tempo este­jam pas­sa­dos e eu não tenha con­se­guido tudo o que que­ria. A morte da escrita é a falta de tempo. Se ele falta, falta a vida, falta a des­co­berta, e sobre o nada não se escreve coisa alguma que mereça ser lido.

*Artigo originalmente publicado no blog Letras Elétricas .

José Geraldo Gouvêa nasceu em Cataguases (MG) e reside atualmente em Pequeri, no mesmo estado. Ex-professor de História, atualmente é bancário. Já publicou o romance “Praia do Sossego” pela Editora Multifoco, em 2010, e participou como tradutor da obra “O Mundo Fantástico de H.P.Lovecraft”, da Editora Clock Tower, em 2013. Traduziu obras de W. H. Hodgson e Clark Ashton-Smith (traduções ainda não publicadas). Também são inéditas as obras “Amores Mortos” (romance de formação) e “O Pecado da Tristeza” (livro de contos, no prelo pela Com-Arte, Ed.USP). Escreve no blog “Letras Elétricas”.

3 comentários em “A Morte da Escrita é a Falta de Tempo*

  1. Muito bom. Curiosamente, por coincidência eu comentava com um amigo nesta semana sobre como somos todos escravos do trabalho. A ponto de nem sequer às vezes saber o que fazer com nosso tempo livre.

    Tenho sempre a impressão que quando meu relógio finalmente bater seis horas (em definitivo) eu serei velho demais para aproveitar…

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