O inferno dos conselhos sobre como escrever e outras rabugices

Por Rubem Cabral

Tanta repetição! Que falta de respeito com a pontuação! Como se escreve assim, com tanta vírgula, sem quebrar parágrafos? Que interessante!

 

Não. Não abuse de frases curtas. Não escreva – de forma alguma, jamais, fuja como o diabo da cruz – sentenças muito longas. Não repita palavras e mais palavras muito próximas, mas escreva de forma “natural”, pô. Escreva simples: use vocábulos comuns, que o leitor médio não precise de dicionário, mas construa metáforas ricas e inéditas, que colem à memória como visgo de jaca em pé de passarinho. Nada de estrangeirismos! Keep it simple, cabrón! Ora, óbvio que textos curtos são o ideal para a geração Twitter, que lê no iPad ou no smartphone. Escreva uma trilogia de fantasia medieval: é o que vende que nem pão quente. Nada de neologismos! Deslembre-os! Ficção-científica é um tiro de laser no pé. Autoajuda dá dinheiro. Ambiente a história somente no Brasil, porém Londres na era Vitoriana tinha um charme todo especial… Escreva estritamente sobre o que você viveu. Use a imaginação e pesquise! Palavrões são chulos. Porra, calão dá mais autenticidade.

 Escrever não é fácil, nunca foi. Todos os que já tentaram sabem muito bem disso. Um enredo criativo, com narração inspirada, diálogos críveis, personagens que gerem empatia, plot twists, clímax, descrições ricas, que resultem na imersão de quem lê. Contudo, mesmo que tais objetivos sejam todos miraculosamente alcançados, ainda assim, o leitor “A” não gostará da personagem “X” ter usado a palavra “gorda”, pois denota preconceito (não só da personagem, provavelmente também do autor, um lipofóbico de marca maior – não use neologismos!). O leitor “B” desistirá do livro no terceiro parágrafo ao ler “efêmero” e não ter a mais pálida ideia do significado (afinal, você abusou mesmo com o “lapso” e o “maniqueísta” nos 1° e 2° parágrafos, o que se poderia esperar?). “C” dirá que houve pistas demais sobre quem era o misterioso assassino, “D”, que tudo ficou escondido e demasiadamente críptico. Houve violência além da conta, faltou um sanguinho…

 Quase todos os dias, quando passo os olhos em tópicos de grupos de escritores, leio tais conselhos conflitantes. Quando escrevo algo e exponho, recebo muitas vezes feedbacks que são como água e óleo. E que lição tiramos de tais ideias, do retorno dos nossos leitores? Ou dos conselhos de nossos colegas de infortúnio?

 A resposta talvez esteja nos livros de alguns autores consagrados. Abro um de meus preferidos e leio: “– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram.”

 O que raios é “nonada” ou “prascóvio”? Vou ao dicionário e aprendo algo novo. Minha nossa! Quanta beleza bruta num parágrafo só!

 “[…] O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes, quero dizer, o mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor doutor, eu nem sequer uso óculos, E diz-me que foi de repente, Sim, senhor doutor, Como uma luz que se apaga, Mais como uma luz que se acende, Nestes últimos dias tinha sentido alguma diferença na vista, Não, senhor doutor, Há, ou houve, algum caso de cegueira na sua família, Nos parentes que conheci ou de quem ouvi falar, nenhum, Sofre de diabetes, Não, senhor doutor, De sífilis, Não, senhor doutor, De hipertensão arterial ou intracraniana,[…]”

 Tanta repetição! Que falta de respeito com a pontuação! Como se escreve assim, com tanta vírgula, sem quebrar parágrafos? Que interessante!

 Em “2666” do Roberto Bolaño – que usa pontuação convencional – há frases que se esticam por páginas e páginas. O autor também costuma nomear suas personagens com nome e sobrenome e repeti-los (os nomes completos) sem preocupação, sem usar sinônimos, sujeito oculto e outros artifícios. Que falta de respeito pelo leitor, não?

 E dá-lhe o Machadão conversando com suas queridas leitoras. E a inclassificável Clarice Lispector dividindo a literatura brasileira em A.C. e D.C. (e o “C” não é de Cristo).

 A verdade, a verdade (veja, estou repetindo!) é que não há receitas. Que é impossível ir de encontro a todos os gostos, não ofender por causa de “X” ou “Y”. Escrever é correr riscos, acho que foi o colega Fernando de Abreu que já escreveu isso.

 Um bom livro sempre encontrará bons leitores – seja nessa geração ou na próxima – pois você não esperava ficar rico com literatura, não? Simplifique, vai, isso, nivela por baixo baseado no que você espera como público, e você terá uma obra menor, sombra da que você não teve bagos para parir. Pasteurize, seu corno, seja politicamente correto, e você terá menos processos com os quais se preocupar. Terá também com o que se arrepender, por saber que preferiu se chafurdar na mediocridade, que não ousou, que teve a oportunidade mas não subiu às montanhas e nunca tocou o rosto de deus.

 Moça ou cara: o seu objetivo é não morrer, é deixar sua marca neste mundo. Este deve ser o seu norte. A sua obra é seu ticket para a imortalidade.

 Não quero dizer, em absoluto, que não existam conselhos valiosos, que bons leitores não possam fornecer um retorno inestimável, que gente mais experiente e culta não deva ser consultada. Apenas quero destacar que você, escritor, você deve estar no comando, o timão firme em suas mãos durante a borrasca. Se tiver certeza, siga o caminho, o seu coração, intuição ou o que o valha. Se tiver dúvidas, consulte aqueles cujas opiniões você considera e respeita, depois decida.

 Não. Tente. Agradar. A. Todos. Não se deixe podar. Taí, talvez, alguns conselhos que você possa aprovar sem restrições…

Rubem Cabral é engenheiro de software, nascido na cidade do Rio de Janeiro e radicado em Zurique, Suíça. Apaixonado por literatura fantástica, já foi publicado em algumas antologias, tais como a bem conhecida “FC do B”, uma coletânea de ficção científica anual da Tarja Editorial. O autor foi selecionado em primeiro lugar na categoria conto no concurso Raízes, em Genebra no ano de 2010. É o organizador da Antologia “!” de Contos Fantásticos e em setembro deste ano lança seu livro de contos, “A Linha Tênue”, em uma nova edição pela Caligo. Para conhecer mais sobre seu trabalho, visite o blog do autor: Contos Agridoces. Contato: rudam@msn.com

8 comentários em “O inferno dos conselhos sobre como escrever e outras rabugices

    1. “Um bom livro sempre encontrará bons leitores”. Também acho. A questão é o que significa esse “bom”, pois o ponto de vista estético nem sempre se equivale ao mercadológico. Assim, o autor deve se perguntar honestamente se quer escrever um bom livro enquanto literatura ou enquanto mercadoria. É por esse motivo que, por exemplo, o neologismo roseano e a falta de pontuação de Saramago são literatura. Há por detrás dessas opções não a gratuidade novidadeira, mas uma proposta estética cuja visibilidade se dá em função dessas escolhas.

      1. Exato, Eduardo. A mensagem que quis passar foi, principalmente, a de certo idealismo literário, de não ter que se submeter necessariamente às demandas do mercado, às expectativas do “leitor médio”. Se a obra de arte será comercial, ou não, isso já é outra história.

  1. Republicou isso em EntreContose comentado:
    “Moça ou cara: o seu objetivo é não morrer, é deixar sua marca neste mundo. Este deve ser o seu norte. A sua obra é seu ticket para a mortalidade.” – Rubem Cabral, sobre a (in)utilidade das dicas sobre a escrita.

    1. Pois é, Fábio. O que é incrível para uns pode ser horrível para outros. O que soa bem escrito para mim, pode ser empolado e pretencioso para outros. Acho que este subjetivismo é característico de todas as formas de arte.

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