Os livros de Samuel Beckett que compõem sua trilogia, “Molloy”, “Malone Morre” e “O Inominável” são realizados em forma de monólogo, em que as personagens relatam suas vivências e pensamentos num discorrer ininterrupto, balbuciante, confuso, com constantes contradições em seus dizeres, certezas, quebradas sempre pelo “talvez”, “se”, “pode ser que”, “não sei bem”.Para além da quebra da tradição literária, a trilogia beckettiana refletiria também dentro de sua obra a máquina burocrática de Kafka, a sociedade carcerária e do suplício que Foucault descreve das microrrelações e o niilismo que Nietzsche prenuncia.
Nessa trilogia Beckett narra a aniquilação do eu lírico, e até mais, do sujeito moderno que nos é tão caro em nossa tradição ocidental do cogito cartesiano, o “penso, logo existo”, o sujeito racional, de posse de sua razão, certeza e clareza de sua busca e respostas. Em Beckett, somos levados para o outro lado de um cotidiano que existe na realidade suja, escura e de luta constante da vida, em que personagens marginais, desmemoriados, sem saberem seus próprios nomes, uma conduta moral, percorrem espaços e experiências sem sentido algum.
A degradação e aniquilação do sujeito começa aos poucos com “Molloy”, personagem vagabundo e errante, sem memória, objetivos que percorre sua cidade e termina da mesma maneira que começou; em seguida, em “Malone Morre”, temos um homem que está imóvel em uma cama de um asilo, ou hospital, ou?… e narra uma história que se confunde com sua história, passamos do vagabundo errante para o confinamento físico do homem que só pode se recordar, lamentar, sem nenhuma liberdade de movimento e passamos finalmente para “O Inominável” em que o personagem é completamente diluído em uma voz que se repete sem fim, sobre o ato de calar a si mesma, falando sozinha, que se repete sem fim.
Tudo está sempre entre o quase e o talvez, ou seria o nada? Afinal, “nada é mais real que nada” (BECKETT, Samuel, Malone Morre, 2004, p. 26) Em nenhum dos três livros existe um progresso quanto à história e objetivo final das personagens, nenhum é alcançado, o desfecho é o abismo aberto, Molloy nas valas da terra da penúria humana, Malone às portas da morte e Mahood/Worm segue sua fala interminável e repetitiva em busca do silêncio.
Para além da quebra da tradição literária, a trilogia beckettiana refletiria também dentro de sua obra a máquina burocrática de Kafka, a sociedade carcerária e do suplício que Foucault descreve das microrrelações e o niilismo que Nietzsche prenuncia. E para além, refletiria a experimentação do limite extremo da vivência humana em sua auto-aniquilação do sujeito, defrontado com o absurdo do mundo, só lhe restaria a repetição, o balbuciar e o gaguejar de uma repetição sem fim, de um esvaziamento da linguagem onde não haveria mais um sentido único, nem uma direção a seguir.
Com as influências de Nietzsche, Schopenhauer, com a presença que teve durante um tempo no círculo existencialista de Sartre antes deste se aliar ao marxismo tendo Joyce e Kafka como pano de fundo literário, Beckett realiza uma obra do desespero humano, dos seres mais abjetos, margeando entre a lucidez vigorosa e a tortuosidade de suas visões do mundo e de si mesmos, bem como uma crítica à capacidade humana racional de progresso, tecnologia e superioridade no silêncio e vazio da linguagem fora da unidade e coesão do “eu”.
Não há em Beckett uma luz no fim do túnel, nenhum elemento racional, religioso ou metafísico capaz de salvar ou dar uma direção às suas personagens, o silêncio do mundo e Deus é denso e fixo e a condição miserável presente e descrita a todo o momento. Beckett não traz nenhuma utopia ou solução, seria um existencialismo mais radical e extremo, onde nem o elemento da liberdade e engajamento está presente. É a visão apocalíptica para onde se encaminharia a humanidade, num abismo, onde muitas situações e pensamentos descritos em suas obras se tornam vívidos cada vez mais em nosso mundo atual.
Talvez se possa dizer que com a realização dessa visão da hecatombe humana ele nos traga o asco, a raiva, a revolta e uma renovação de possibilidade de mudança. Seria possível olhar-se diante do espelho em penúria e não revoltar-se? Se sim, algo há que se fazer em meio ao silêncio, caso contrário, resta-nos morrer como um de seus personagens, isolados em nossa própria cama a qual chamamos Humanidade.
Nestes livros de Beckett existe uma lucidez nos e entre seus personagens, mas não é uma lucidez que revelaria mistérios ou clareasse o caminho à frente para a certeza das coisas, das ações e, sobretudo de si mesmo, é antes uma, talvez melhor dizendo, anti-lucidez, num movimento às avessas: é uma lucidez da não lucidez que se possui.