Por Felipe Rodrigues
As críticas negativas a respeito do livro afetaram em cheio o escritor, que via sua obra sendo qualificada nos jornais e revistas literárias como “insalubre”, “falha mortal”, “abominável”, “monstruosamente artificial”, “horrorosa e suja”, entre outros adjetivos.
Hoje pode parecer surpreendente, mas o clássico Moby Dick, de Herman Melville, foi um fracasso de crítica e público em seu lançamento – 1851. Oscilando entre avaliações positivas e negativas, foi considerado filosófico demais, pretensioso e destoante das obras anteriores do autor. Com a má recepção do romance, o escritor entrou em crise.
Isso aconteceu porque Melville começou a carreira produzindo narrativas pessoais, baseadas nas aventuras que tinha vivido como marinheiro. Seu primeiro livro, Typee, relata sua deserção de um navio e a temporada em torno de uma tribo de canibais nas Ilhas Marquesas, na Polinésia Francesa, seguido pela continuação, Omoo: A Narrative of Adventures in the South Seas (em tradução livre: “Ommo: Uma Narrativa de Aventuras nos Mares do Sul”), inspirada pelo tempo que passou no Taiti.
Em White-Jacket (trad. livre, “Jaqueta Branca”), de 1850, Melville descreveu os 14 meses em que serviu à Marinha dos Estados Unidos. Com estes romances iniciais, centrados na ação e na exploração de paisagens distantes, Melville ganhou certo reconhecimento. Ficou famoso por ser “o homem que viveu entre os canibais”.
Mas, se a fama de Melville começou a ser apagada após o sucesso inicial dos livros de ação e lançamento de Moby Dick – o romance que escreveu na sequência, enquanto sentia-se extremamente frustrado, colocou-o à beira da loucura: o ousado Pierre, or, The Ambiguities (Pierre ou as Ambiguidades).
É um romance protagonizado por um jovem escritor, Pierre Glendinning, aristocrata e herdeiro de terras conquistadas pela família. Prestes a se casar com Lucy, conhece a bela Isabel, que revela ser a filha bastarda de seu pai. Ela passou os anos de afastamento confinada em um manicômio.
A mãe de Pierre, para proteger a memória do pai, tenta afastá-lo de Isabel, mas não consegue. Eles se tornam muito próximos e Pierre cogita o casamento com a irmã, para lhe dar direitos sobre a herança.
A partir daí, a simbiose entre os dois termina em uma relação incestuosa. Para completar, a ex-noiva de Pierre – sem conseguir esquecer o rapaz – junta-se a eles. Excluído, o trio passa a viver em um abrigo insalubre improvisado para artistas.
Nascido da decepção pós-Moby Dick, este romance abordou temas delicados para a época e manteve o tom filosófico da obra anterior. Segundo os familiares de Melville, no período em que ele estava produzindo o livro – às vésperas do Natal – “não saía do quarto, estava sob um estado de excitação mórbida que brevemente afetaria a sua saúde”.
Há de se imaginar a discrepância de um autor conhecido por aventuras entre nativos e marinheiros, escrevendo sobre um jovem que abdica da riqueza da família, abandona a noiva; e faz sexo com a meia-irmã em um abrigo precário. Em carta enviada ao amigo Nathaniel Hawthorne – novelista e contista norte-americano – Melville confessou que sentia dificuldade para escrever ao público enquanto queria escrever para si mesmo.
As críticas negativas a respeito do livro afetaram em cheio o escritor, que via sua obra sendo qualificada nos jornais e revistas literárias como “insalubre”, “falha mortal”, “abominável”, “monstruosamente artificial”, “horrorosa e suja”, entre outros adjetivos.
Afora a temática do livro, há diversas semelhanças biográficas entre Pierre e Melville. Roubando um termo usado por Paulo Leminski, “Pierre” pode ser considerada uma dúplice ficção. Um escritor decepcionado cria um romance sobre outro escritor, que busca inspiração a todo custo. Fora isso, a origem de Melville e Pierre é a mesma: ambos bem nascidos e herdeiros de famílias ricas.
Talvez, a crise emocional vivida por Melville enquanto escrevia “Pierre” tenha delineado o destino trágico dos personagens e seus perfis bizarros. O relacionamento do protagonista e sua mãe, por exemplo, é realmente estranho, pois ela faz questão de se manter arrumada toda vez que vê o filho e, além disso, os dois chamam-se de “irmãos”, o que sugere outra relação incestuosa. Isabel, por sua vez, é emocionalmente instável e envolta em mistérios.
O filme Pola X (1999), do diretor francês Leos Carax – baseado em “Pierre” – consegue captar a densidade e traduzir o universo confuso do romance e, por consequência, do que se passava com o escritor. Uma das cenas mais interessantes do filme ocorre quando Pierre encontra Isabel na escuridão de uma floresta. A mulher em andrajos, aparentando desespero, começa a sussurrar frases desconexas e ambos caminham sem rumo.
Livro de derrocada e desapontamento, Pierre, or, The Ambiguities tem seu maior valor como malha de recordações e retrato da situação de Melville àquele período de isolamento. Foi crucial para o estudo de sua vida e obra a partir de 1920, quando seu trabalho ganhou uma revisão por parte dos críticos literários, fazendo a importância do autor emergir 30 anos após a sua morte.
O escritor era praticamente desconhecido ao final da vida, tanto que o jornal The New York Times publicou uma carta enviada à seção de obituários com o nome do escritor grafado de forma incorreta: The Late Hiram Melville (O Falecido Hiram Melville).
A obra que ficou mais conhecida após o revival foi o seu último manuscrito, Billy Budd, adaptado para óperas e para o cinema e considerado uma “pérola da literatura em língua inglesa”. Já Moby Dick, que apresentou a baleia mais conhecida do ocidente, talvez atrás – sinal dos tempos – da estrela do Seaworld, Shamu, tornou-se um clássico, ganhando adaptações para crianças, para o mundo dos quadrinhos e do cinema.
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Nasceu em São Paulo, estudou jornalismo e começou a se dedicar à escrita em 2005. Além de jornalista, trabalhou em um sebo do centro histórico onde seu interesse pela leitura e escrita aumentou. Em 2010 começou a participar dos concursos mensais da comunidade literária Contos Fantásticos no Orkut, discutindo seus textos e as produções de outros escritores. Tem dois contos publicados na “! – Antologia de Contos Fantásticos˜, da editora Caligo: “Nem Ligo” e “Corpos”.
Mantém o blog Havana Moon, onde publica o que escreve.